De acordo com a decisão proferida pela desembargadora Denise Volpato na tarde deste domingo (19), está suspenso os efeitos do decreto municipal 9.876/2020 – que autorizava a prática de exercícios físicos individuais nas praias de Balneário Camboriú, com uso obrigatório de máscara e distanciamento social – por ferir o decreto estadual que veda atividades nas praias do Estado de Santa Catarina.
Com isso, volta a valer decreto 562/2020 que proíbe até o dia 31 de maio a concentração da população em praias, parques e praças.
Confira a decisão abaixo:
DESPACHO/DECISÃO
I- Relatório Trata-se de Mandado de Segurança impetrado pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina contra ato exarado pelo Excelentíssimo Desembargador Guilherme Nunes Born, em plantão judicial, que, em Agravo de Instrumento n. 500888489.2020.8.24.0000, denegou pedido liminar de concessão de antecipação de tutela recursal concernente a sobrestamento dos efeitos do Decreto Municipal n. 9.876/2020, expedido pelo Prefeito Municipal de Balneário Camboriú/SC em contrariedade ao Decreto Estadual n. 562/2020. Sustenta o desacerto da decisão atacada na medida em que contraria recomendação da Organização Mundial de Saúde, e do próprio Estado de Santa Catarina que preconizam a adoção de medidas de distanciamento social para previnir/reduzir o contágio e disseminação da COVID-19, causada pelo vírus Sars-Cov-2. Aduz o Ministério Público que no âmbito da competência concorrente dos entes federativos descabe ao gestor municipal tomar medidas contrárias, que elasteçam, as adotadas pelo Governador. Por este motivo, pugna pela concessão da medida liminar com o fito de ser suspensa de imediato a eficácia do Decreto n. 9.876/2020, do Município de Balneário Camboriú/SC. II- Decisão Recebo a competência para apreciar em caráter de plantão especial do Órgão Especial o presente Mandado de Segurança contra ato expedido pelo relator do AI n. 5008884-89.2020.8.24.0000 em caráter de plantão judiciário regular, nos termos do artigo 58, I, “c”, c/c artigo 327, § 4o., do Regimento Interno do Tribunal de Justiça. Inicialmente convém destacar ser cabível o ajuizamento da presente demanda, nos termos do artigo 5.º da Lei n.º 12.016/2009 – a Lei do Mandado de Segurança, in verbis:
“Art. 5.º Não se concederá mandado de segurança quando se tratar:
I – de ato do qual caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução;
II – de decisão judicial da qual caiba recurso com efeito suspensivo;
III – de decisão judicial transitada em julgado.” O Mandado de Segurança contrapõe-se à decisão liminar proferida nos autos de Agravo de Instrumento n. 5008884-89.2020.8.24.0000 que indeferiu o pleito de atribuição de efeito suspensivo ativo ao recurso (antecipação dos efeitos da tutela pretendida no agravo de instrumento).
Nos termos do artigo 995, caput, do Código de Processo Civil, os recursos não detêm efeito suspensivo, como destaca-se: “Art. 995. Os recursos não impedem a eficácia da decisão, salvo disposição legal ou decisão judicial em sentido diverso.
Parágrafo único. A eficácia da decisão recorrida poderá ser suspensa por decisão do relator, se da imediata produção de seus efeitos houver risco de dano grave, de difícil ou impossível reparação, e ficar demonstrada a probabilidade de provimento do recurso.” Eventual pedido de tutela de urgência articulado em Agravo Interno, por sua vez, teria eficácia limitada, pois direcionado ao mesmo prolator da decisão atacada. Dessarte, em juízo perfunctório de admissibilidade, conheço da ação. Pois bem. No caso em apreço o Ministério Público ataca a legalidade do Decreto n. 9.876/2020, do Município de Balneário Camboriú/SC, por contrariar diretrizes sanitárias estabelecidas pelo Estado de Santa Catarina no Decreto n. 562/2020. Extrai-se do conteúdo das normas em comento:
Decreto n. 9.876/2020 – do Município de Balneário Camboriú/SC
“Art. 1º Fica autorizado o acesso às praias do Município de Balneário Camboriú, somente para a prática esportiva de surf, e demais exercícios individuais como caminhada e corrida com uso de máscara desde que respeitando o distanciamento social.”
Decreto n. 562/2020 – do Estado de Santa Catarina
Art. 1º Fica declarado estado de calamidade pública em todo o território catarinense, para fins de enfrentamento à epidemia da COVID-19, pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias.
Art. 2º Enquanto perdurar o estado de calamidade pública, tornam-se obrigatórias as medidas de combate e enfrentamento à pandemia da COVID-19 previstas neste Decreto.
[…]
Art. 8º Ficam suspensas, em todo o território catarinense, sob regime de quarentena, nos termos do inciso II do art. 2º da Lei federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020; […]
II – até 31 de maio de 2020: a) os eventos e as reuniões de qualquer natureza, de caráter público ou privado, incluídas excursões, cursos presenciais, missas e cultos religiosos; b) a concentração e a permanência de pessoas em espaços públicos de uso coletivo, como parques, praças e praias;” Como se observa, há evidente confronto entre os diplomas normativos estadual
e municipal.
Linhas gerais, a Constituição da República Federativa do Brasil (Constituição Federal) distribui competência regulamentares aos entes municipais, estadual e federal. Com respeito à saúde, o artigo 23, estabelece ser comum a União, Estados e Municípios a competência para legislar sobre cuidados e assistência à saúde.
No mesmo sentido, o artigo 30 esclarece competir aos municípios “legislar sobre assuntos de interesse local” (inciso I) e “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber” (inciso II). Assim, compete tanto ao estado, como aos municípios, legislar acerca da forma como será alcançado o direito à saúde (artigo 23, II, da Constituição Federal), respeitado o interesse local ou regional, e o caráter suplementar (artigo 30, II, da Constituição Federal). No aspecto, convém destacar que adotadas medidas restritivas pelo gestor regional, qual seja, o Estado de Santa Catarina, é de todo impertinente seu afrouxamento em âmbito local, sob pena de malferir-se não só a necessária harmonia na condução dos interesses público, mas principalmente de restringir a eficácia da medida em seu espectro regional. Nesse sentido imperioso reconhecer que a aplicação de medidas contrárias ao Decreto Estadual por gestores locais acaba por espraiar deletérios efeitos regionais, podendo criar focos internos de contágio a refletir em ataque a incolumidade pública do estado como um todo. Conforme a Constituição da República Federativa do Brasil, portanto, normas regulamentares municipais devem unicamente completar lacunas, jamais contrariar os ditames estabelecidos pelo ente estadual, sempre visando ampliar medidas de promoção da saúde. No âmbito da saúde, portanto, observadas as diretrizes federais e estaduais, pode o gestor do município tomar unicamente medidas que ampliem o acesso a saúde, sem atacar direta ou indiretamente a eficácia das disposições exaradas pelo Estado ou União. Deve sempre prevalecer a norma que melhor defenda o direito tutelado, in casu, o direito à saúde. Pode, por exemplo, o poder público local incluir determinada vacina no calendário de vacinação, observadas as especificidades e o interesse local. Isso significa, no caso vertente, que os municípios não podem autorizar atividades restringidas pelo Estado, vez que não ampliam medidas de cuidado sanitário. A preservação do interesse público exige a atuação harmônica entre os poderes e entes federados, com vistas a garantir a efetividade das políticas públicas no combate à propagação do vírus. Esse é o entendimento perfilado pelo Supremo Tribunal Federal ao apreciar a ADI 6.341 e a ADPF 672. Logo, sob o aspecto formal, descabida a edição do decreto atacado. Ademais, imperioso reconhecer a adequação material do Decreto Estadual n. 562/2020 aos fins a que se propõe. Não se desconhece os problemas econômicos e sociais advindos das restrições ao exercício de atividades profissionais/empresariais, bem como de lazer em face da quarentena.
Ocorre que, nenhum direito ou princípio, mesmo os fundamentais, detêm extensão ilimitada, sendo suas balizas delineadas por outro direito ou princípio de idêntica (ou superior) hierarquia, de modo a extrair-se a máxima eficácia de ambos. Assim, a livre inciativa “esbarra” na exigência de qualificação profissional específica ou de registro especial de autorização ao comércio de determinada substância, por exemplo (v.g., a livre iniciativa não permite o comércio de substâncias entorpecentes ilícitas, face o interesse na saúde coletiva). Nesse sentido, é possível ao poder público limitar a atuação do ente privado em circunstâncias especiais, como é o caso atual. No choque entre o direito ao lazer (e seus consectários para o turismo e atividade econômica local) e o princípio de preservação da vida e saúde dos cidadãos, imperioso reconhecer a prevalência do primeiro. Isso porque, na sociedade atual, cidadãos sadios configuram premissa necessária ao regular desenvolvimento da atividade econômica do turismo, bem como para o gozo do lazer. A aglomeração de pessoas nas praias representa situação de risco de propagação da COVID-19 (ou Sars-Cov-2), havendo supedâneo fático a justificar a medida (aplicada no Decreto Estadual n. 562/2020). No contexto, o direito à saúde e à vida de toda a sociedade catarinense, e igualmente da sociedade brasileira, merece preponderar diante da limitação temporária do exercício de atividades de lazer nas praias de Balneário Camboriú/SC. Segundo as contemporâneas teorias hermenêuticas, havendo choque entre normas constitucionais de mesma hierarquia impõe-se ao Estado-Juiz efetuar ponderação racional com o fito de aplicar ao caso a mais adequada a preservar a máxima eficácia de ambas, atendendo assim ao comando legal constante nos artigo 5º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro e 8º, do Novo Código de Processo Civil. Extraem-se:
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
“Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”
Novo Código de Processo Civil
“Art. 8o Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.” Com relação ao princípio da proporcionalidade, destaca-se da doutrina do Ministro Luís Roberto Barroso:
“A doutrina – tanto lusitana quanto brasileira – que se abebera no conhecimento jurídico produzido na Alemanha, reproduz e endossa [uma] tríplice caracterização do princípio da proporcionalidade, como é mais comumente referido pelos alemães. Assim é que dele se extraem os requisitos (a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; (b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento dos fins visados; e c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos.” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de um dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 209) Na hipótese, como dito, inexiste igualdade horizontal entre os preceitos, restando evidente que a vida constitui objeto maior (pois a preservação da vida como aspecto biológico precede seus desdobramentos sociais). Desse modo, aplicando-se os norteadores interpretativos dos princípios da racionalidade e proporcionalidade, importa reconhecer a adequação do Decreto Estadual, sendo, pois, vedado ao Município de Balneário Camboriú/SC contrariá-lo (restringindo a eficácia de medida de proteção sanitária). Não se desconhece o prejuízo financeiro e pessoal experimentado por toda sociedade, porém referido revés não pode se sobrepor à vida humana, observado o colapso social do sistema de saúde de inúmeros países (com estrutura igual ou melhor à existente em nosso estado). Como é de conhecimento público e notório, o mundo encontra-se em crise sanitária a exigir de todas as pessoas comportamento solidário articulado, com vias a preservação da vida e saúde dos indivíduos que vivem em comunidade. Impõe-se destacar que o estado de calamidade humana experimentado por locais que tardaram a adotar medidas de isolamento igualmente representaria embaraço ao exercício regular de atividades econômicas e de lazer, de modo que, em última análise, é a propagação da doença que impinge danos a grande parte dos cidadãos, organizações econômicas e sociais. As restrições a atividades econômicas e de lazer, por sua vez, atacam a propagação do vírus (e, portanto, em certa medida, a própria crise econômica e humana a ela subjacente). Sopesadas, portanto, as complexas variáveis que circunscrevem a situação conflituosa em exame, imperioso reconhecer restar evidenciada a irregularidade constitucional do Decreto n. 9.876/2020, do Município de Balneário Camboriú/SC, ao restringir medidas de preservação da saúde dos catarinenses. Ante o exposto, defiro a liminar postulada para sustar imediatamente os efeitos do Decreto n. 9.876/2020, do Municício de Balneário Camboriú/SC, por contrariar diretrizes sanitárias estabecidas pelo Estado de Santa Catarina no Decreto n. 562/2020. Expeça-se, de imediato, ofício ao Governador do Estado de Santa Catarina, Secretaria do Estado da Saúde, Polícia Militar, Polícia Civil e Guarda Municipal de Balneário Camboriú/SC, notificando-os da presente decisão liminar, para que fiscalizem seu
cumprimento dos termos do Decreto Estadual n. 562/2020. Solicite-se informações à autoridade coatora. Notifiquem-se os litisconsortes necessários. Comunique-se o Gabinete de Acompanhamento da Situação do Covid-19, a teor do que preconiza o art. 10, § 2º, da Resolução Conjunta GP/CGJ n. 5/2020. Intimem-se com urgência, no plantão judiciário.
Documento eletrônico assinado por DENISE VOLPATO, Desembargadora, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico